Gosto da cereja.
Logo que chego a Porto Alegre, onde vivi grande parte da minha vida, acabo sentindo sempre uma forte nostalgia, mesclada a uma tristeza mansa, lá no fundo da alma, que aponta pra passagem do tempo.
Juntou-se a isso, naquele dia, e não sei exatamente por quê, um sentimento de solidão atávica, talvez da própria condição humana e que me fazia cantarolar: “onde quer que eu vá, sei que vou sozinho”.
O que não me impediu de fazer uma caminhada pela antiga e simpática pracinha da Caixa D’Água Moinhos de Vento, porque aprecio muito e também, por ser um lugar pouco frequentado.
Já andei ali tão sozinho e acabei “indo tão longe” que quando vi estava de novo em Istambul... ou em Marrakesh .
Era uma segunda feira, 11 de outubro, véspera de feriado e um sol tímido se despedia de um dia lindo de primavera.
Não havia ninguém e a pracinha me recebeu com as mesmas honrarias com que o habitante do deserto recebe, em sua tenda e sem perguntar a que tribo pertence, o viajante solitário, que chega com sede e com fome.
Caminhava tranquilamente quando escutei um som de algaravia, de natureza em festa, que me transportou a um passado distante.
Fui em direção do som e acabei chegando, de novo, não a Istambul, nem a Marrakesh mas à infância.
Minha e dos pássaros crianças, que se regalavam com os saborosos frutos maduros de uma antiga e generosa cerejeira
Sem piscar, entrei na festa; afinal, eu estava em casa e o jorro de vida que invadiu todo meu ser me fez sentir 50 anos mais jovem.
Saí de lá com a roupa, mãos e lábios lambuzados de vermelho cereja e com a agradável sensação de ter sido surpreendido por um tipo de beleza do mundo que eu havia esquecido que existia.
Dormi muito bem naquela noite, mas quando acordei no outro dia e olhei o espelho, lá estavam, implacáveis, meus 63 anos, refletidos nos cabelos brancos e nas rugas.
Menos na expressão. Por isso, e de imediato, me vesti, peguei um saco plástico e parti pra minha caminhada e, quem sabe?, colher algumas cerejas.
A pracinha já havia me visto e, tão feliz quanto eu, acenava de longe como quem diz: “Veeeeem, que não tem ninguém!”. Porque era o feriado de 12 de outubro: a cidade quase vazia e o dia lindo, ensolarado.
Tão cedo que o orvalho formava como que colares de gotas de cristal piscando à luz do sol. Mais as flores e o perfume... Minha anfitriã me recebia ainda mais linda que no dia anterior.
Até os pássaros me reconheceram e não se sentiram nem um pouco ameaçados; nem mesmo estranharam meu comportamento, de me pendurar nos galhos como um deles.
A Cerejeira, generosa não só nos frutos mas na copada também, escondia, camuflava, dentro de si, a mim e aos pássaros.
De repente, ouvi uma voz autoritária que gritava: “Mas o que é isso? Desce já daí, guri”!
Era o vigilante, um rapaz jovem, que havia chegado depois de mim e conseguia ver somente meus pés no meio das folhas.
De tão alto do chão, eu tinha perdido qualquer noção de tempo. Mais ainda: eu havia me perdido no tempo.
E no espaço também, tanto que me joguei lá de cima, caindo em pé e com a sacola na mão, cheia de cerejas, exatamente na frente do Guarda que me olhava como quem vê um fantasma, de tão espantado.
“Mas que barbaridade”, dizia ele constrangido, atrapalhado e saindo dali, chacoalhando a cabeça dizendo: “Puxa vida, a gente vê cada coisa”!
Já fui chamado de tanta coisa, mas de “cada coisa”, era a primeira vez.
“Mooooço!!,”gritei pra ele, que parou e olhou pra trás, ainda espantado. Então emendei em tom amigável, deixando-o mais atrapalhado, ainda:
“Repara não: hoje é dia da criança!”
Tanto acreditei que saí dali de pés descalços, calças curtas e ao olhar pra trás, lá estava a pracinha solidária, porque também solitária, piscando pra mim!
A geléia, que fiz com as cerejas, com certeza, será saboreada em pequenas doses, mas não em busca de algum tempo perdido, mas celebrando os espaços e os tempos, preciosos, nos quais, muitas vezes, eu me permito me perder.
Um jeito, talvez, de driblar a idade que as convenções insistem em me dizer que tenho com a idade que sempre tive.
CarlosGrassioli