quinta-feira, 28 de julho de 2011

Cantiga para acordar em “si”, ou vida de cachorro

Um pé empurra o edredon. Um olho aberto, o outro dormindo ainda.
Na janela gotas de orvalho riscam o vidro.
É cedo, é frio. É inverno!
Uma mão puxa o edredon de volta, até o nariz. Só mais um pouquinho.
Já acordado. Um leve vapor sobe do mar, uma névoa láctea. O céu, azul claro, com rabiscos rosa-pastel , pintados por alguma criança.
O sol, sem bater ou pedir licença, entra pela porta e pelas janelas, esparramando-se pelo chão da sala, alcançando a cozinha, as cadeiras, subindo pela mesa, pela bacia de frutas, pelo cesto de pão, pela xícara. A cafeteira fumegando e o perfume inconfundível de café recém feito.
Com a gravidade que o momento requer, celebro calmamente, mais uma missa particular em intenção de mim mesmo. Por isso, só por isso, neste momento a felicidade é dona da casa.
Em seguida, animal doméstico que sou, cão de estimação de mim mesmo, satisfeito com meu dono, procuro o velho tapete na soleira, enrosco-me todo, no deleite do meu próprio aconchego, cabeça encostando no rabo, com um único e exclusivo interesse: o meu próprio cheiro.
Se por acaso perguntarem se o dono da casa está, por favor, alguém responda por mim.
Falem como o povo aqui da GAmboa;
Tá ma saiu!


Carlos Grassioli

terça-feira, 26 de julho de 2011

Um pequeno desabafo...

Trabalhei por um tempo numa vila, muito pobre, na minha cidade onde havia negros, brancos, pardos sei lá…Todas as cores convivendo juntas..
Numa reunião de pais numa tarde, dois negros conversando de um terceiro que eles não aprovavam a conduta, um deles disse:
“Eu detesto negro burro”!
E, o outro respondeu: “É isso aí, negro bom não se mistura!”
Isso já faz algum tempo, mas não me sai da memória!
Como podemos, enquanto civilização humana, criar preconceitos tão perversos, tão desumanos,tão tristes…?
Preconceitos que atingem a própria dignidade de toda a raça humana. Que é injetado na mente dos próprios seres sofredores destas discriminações brutais e dolorosas.
E, todos nós, de uma maneira ou de outro, independente de partidos, de classe social, somos responsável por este triste sentimento humano.
Isso é sério, muito sério e precisa ser encarado de frente, entendido, e de alguma maneira resolvido, já estamos em 2011…incrível que ainda tenhamos este tipo de pensar!
Quem sabe um bom começo seria observar nossas próprias mentes e atitudes?
Quem sabe, ao invés de culparmos governos e papas, não seria de melhor valia, observarmos nosso coração?
Quem sabe deixarmos de ser homem, mulher, deficiente, negro, branco, menino de rua, judeu etc…para sermos simplesmente seres humanos?
Por que é o que somos!
Quem sabe apenas um pouco mais de AMOR? Tão simples…
Fátima

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Poder dizer que te amo...

Como estou distante de voce...meu grande e querido amigo.
A vida separa caminhos, em instantes, sem perguntas.
Levastes um pouco de minha lucidez.
Ou...talvez pior, bastante da minha loucura.
Não te quis meu, deixei-te para a vida.
Fomos pequenos momentos...e isso precisa bastar.
Na nossa arrogância humana, por vezes cremos na eternidade,
cremos na continuidade, no poder de nossas vontades.
A passos largos galgamos trechos vazios, certos de uma
concretude de poder...
Ah! Que vã prepotência...
Quisera ter o poder de estar contigo no agora.
Quisera ter o poder de amassar a distância que nos separa.
Quisera poder misturar nossas mentes como outrora...


Para um grande amigo
Francisca Inês

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Para pensar...

"Nós pedimos com insistência:

Nunca digam – "Isso é natural!"

Diante dos acontecimentos de cada dia, numa época em que reina a confusão, em que corre sangue, em que se ordena a desordem, em que o arbítrio tem força de lei, em que a humanidade se desumaniza, nunca digam – "Isso é natural!"

Estranhem o que não for estranho. Tomem por inexplicável o habitual.

Sintam-se perplexos ante o cotidiano.

Tratem de achar um remédio para o abuso, mas não se esqueçam de que o abuso é, sempre, a regra. Desconfiem do mais trivial, na aparência singelo.

Examinem o que parece habitual.

Suplicamos, expressamente: não aceitem o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural,
nada deve parecer impossível de mudar."

Bertold Brecht (1898-1956) - poeta e dramaturgo alemão.


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domingo, 10 de julho de 2011

Meus versos guardados

Sou feita de amor e sonhos,
de crenças, quereres, muito gostar.
Sou feita de pouco ódio,
pouca raiva, pouco rancor.
Sou simplesmente assim.
Pouco polêmica...como as cores,
que só surpreendem, quando se misturam.
Sou feita de mim...de meu pensar
e, nada mais.




Com amor para vcs!

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Fazendo versos...

Sem nenhum intuito, apenas por estar no parque,
apenas por gostar...


O fogo quente, amarelo e crepitante
traz estalos ao silêncio da alegria.
O sol temeroso e tímido
se aventura pelos vidros da janela.
Há paz naquele momento solitário.
O amanhã virá...
e, será apenas mais um dia.

domingo, 3 de julho de 2011

Quebrando vidraças

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons.
(Martin Luther King)


A respeito de um dos meus últimos escritos, uma sobrinha me surpreendeu com uma expressão que me fez refletir sobre o que eu havia escrito. Mais especificamente, sobre um tipo silêncio que eu abordo nesse texto. O "Silêncio das palavras não ditas e que causa desconforto”. A expressão que ela usou foi: "De forma até suave, mas você acaba quebrando vidraças".
Reli aquele parágrafo e imediatamente decidi tentar encontrar “o fio da meada”, onde aquele tipo de reflexão havia começado, porque eu tinha certeza de que estava ligado a alguma vivência de viagem e que havia mexido muito comigo. Não precisei pensar muito: bastou ler a manchete de hoje “Mais um trabalhador rural é assassinado no Pará, o quinto, já, em menos de um mês”. Quando dei por conta, estava na Bélgica de novo.
Foi no ano passado, quando eu andava pelas ruas de Bruxelas e avistei um grande largo ocupado unicamente por várias e imensas esculturas, de torsos humanos de aproximadamente 2ms de altura, todas iguais, expostas como que em fila indiana. Curioso, fui me aproximando e na medida em que chegava mais perto fui sendo invadido por uma forte e estranha sensação. Quando finalmente atingi o largo, percebi que os rostos, alem da expressão neutra, todos ostentavam mordaças sobre as bocas.
Nunca tinha visto uma exposição daquela dimensão num espaço público e de tamanho impacto! Jamais vou esquecer, antes mesmo de saber o tema da exposição, a sensação que eu já sentia. Remetia ao título: "OS SILÊNCIOS DE TODOS NÓS". As únicas palavras escritas, em todo o espaço, absolutamente suficientes e até dispensáveis.
Embora sugerisse meditação, mas muito mais reflexão, não era nada zen, esotérico ou místico.
As pessoas circulavam entre as esculturas no mais absoluto silêncio e com expressão grave, séria; nem mesmo uma insinuação de riso, como se estivessem caminhando dentro de um templo... ou num cemitério. Até as crianças correspondiam à seriedade dos adultos.
Tão forte foi o impacto pra mim que num determinado momento era como se aquelas imensas esculturas, numa estranha cena de cinema mudo, começassem a se movimentar, em procissão absolutamente silenciosa.
Lembrei-me, de imediato — e não saberia explicar como e por quê —, da música e de toda a letra de “Rosa de Hiroshima”, gravada por Ney Matogrosso.
Aquelas bocas amordaçadas, sim, quebravam vidraças. As vidraças do mundo.
E me remeteram aos mais diversos tipos de silêncios nefastos, como o das palavras não ditas, que todos conhecemos, porque o vivenciamos não só no âmbito privado, como no social, mas, e sobretudo, aos piores silêncios: ao silencio criminoso da indiferença, do “quem cala consente”; e ao silêncio imposto pelo medo, pela opressão.
Era de manhã e eu tinha ainda um bom tempo para curtir a cidade, mas decidi ir direto à estação, onde fiquei horas, sentado num banco esperando o trem e refletindo sobre a exposição e sobre o forte impacto que ela causou sobre mim.
Fiquei pensando na importância da arte, da universalidade da arte, sobretudo quando ela dispensa absolutamente a palavra. Não precisa de legenda.
Aquela fantástica obra, na sua unidade, abarcava, para mim, a totalidade do mundo. Os silêncios do mundo.
Sobre a fome e a miséria, por exemplo! Pensei o quanto seria importante se essa obra circulasse e fosse instalada, na calada da noite, em meio aos centros financeiros do mundo ou em meio aos bairros mais ricos onde vive, encastelada e absolutamente indiferente ao que acontece fora de seus condomínios luxuosos e fechados, uma ínfima parcela da população mundial, e que concentra em suas mãos quase toda a riqueza do mundo.
Desde o momento em que deixei aquele largo em Bruxelas, e até chegar em casa, em Paris, eu não me lembro de ter visto ou sentido coisa alguma, nem os campos, nem a paisagem humana que me cercava, nem seus sons.
Todo o meu espaço visual e sonoro fora invadido por aquelas esculturas e seus ruidosos silêncios, e que hoje me remeteram a um silêncio específico.
O silêncio de todos nós, brasileiros, diante dessa triste e trágica realidade relacionada à posse da terra, que não mudou desde que esse Brasil é Brasil e que confere aos “senhores feudais” o perpétuo direito de propriedade de uma terra encharcada de suor e sangue. Sob o aspecto da posse e uso da terra, sai governo, entra governo e o Brasil, enquanto nação, não sai da Idade Média.
Que vergonha!

Carlos Grassioli