quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Cronicamente musical

   
              Para Frans, Amélia e Sarah.

1º  movimento
“A crônica é a canção da literatura,” diz com propriedade o excelente cronista e grande conhecedor de música erudita Artur da Távola.
Quem sabe aí, pra mim, uma explicação? Através da crônica, uma tentativa de compensar minha mais antiga frustração: a de ter abandonado, muito cedo ainda, a música, embora eu precise dela, na vida, como preciso da água, do ar.
Quando nascemos com um dom e o abandonamos, muitas vezes por descaso ou descuido, mais cedo ou mais tarde a própria vida se encarrega de nos cobrar ou de nos mostrar que se padecemos do desconforto crônico, parecido ao de caminhar com sapatos  apertados ou  folgados, é porque, de uma forma ou de outra, nos desviamos do caminho que nos fora predestinado.
Mas a vida não é madrasta, ao contrário: é mãe e generosa, sobretudo no campo da arte, permitindo-nos encontrar outras formas, outros canais de expressão, onde podemos - como atores ou simples espectadores - suprir ou preencher essas lacunas.
Sempre que a vida (e muitas vezes de forma surpreendente) me oferece, como simples espectador, faço valer e tiro o maior proveito de toda e qualquer oportunidade de entrar em contato com a verdadeira arte.
Em tempos onde a mesmice e um certo ritmo alucinante têm sido quase a tônica, rareiam-se cada vez mais as oportunidades de contemplarmos com calma e vibrarmos, de fato, diante de uma obra de arte.
Pelos menos comigo tem sido assim, e quando acontece acabo sempre e inevitavelmente me emocionando muito e até indo às lagrimas. Com música, então! Por isso, talvez, a vontade de compartilhá-las
Estava na Bélgica, em junho de 2010, visitando amigos queridos, pessoas simples, de hábitos simples mas de sensibilidade incomum, que me surpreenderam com um convite inusitado: assistir ao concerto “A Missa Réquiem” de Verdi.
Nunca tinha assistido e desde o início, tamanha era a magnitude do concerto, em todos os aspectos, que não resisti e, totalmente arrebatado, deixei as lagrimas caírem em abundância durante quase todo o espetáculo. Sim: ESPETÁCULO! Um verdadeiro monumento musical, porque impressiona, sobretudo pelo seu caráter espetacular
Uma maravilhosa heresia musical, numa espécie de ópera religiosa composta para orquestra, coral e quatro vozes: Soprano, Mezzo soprano, Tenor e Barítono.
A Ópera Real da Valônia, (região da Bélgica) na cidade de Charleroi,  lotada, com duas mil pessoas assistindo e - pasmem! - no mais absoluto silêncio, só interrompido pelos aplausos efusivos e ovações, merecidos e intermináveis, no grande final.
2º  movimento
Com um desdobramento emocional tão intenso quanto, mas diferente daquele provocado pela musica de Verdi, um outro momento musical, num pequeno “espetáculo privado”, quando  escutava, em casa, música cigana que eu havia trazido da Hungria e que registrei na forma do pequeno texto poético a seguir:
Uma velha canção cigana, um noturno.
Bem no extremo sul do continente americano, noite alta, já,  e uma  lua cheia, vestida de gala,  dançava solta no céu, cobrindo uma generosa fatia de mar com uma espécie de longa cauda, tecida em cetim prateado. Um momento de rara beleza, mais que um complemento, o contraponto perfeito ao sentimento de infinita tristeza.
No ar um forte e doce perfume de manacás em flor. Na pele o toque da brisa; na língua um gosto suave e salgado de maresia... e lágrima: mas  na medida em que a música invadia o espaço sonoro, aos poucos, como num passe de mágica, tudo que era triste foi desaparecendo, dando lugar a um estado de puro e absoluto encantamento.
A linha do horizonte, esticada, tensa, bem definida e levemente arqueada, separando céu, mar e continentes, era a corda única e bem afinada do violino do jovem virtuose cigano, perdido entre as montanhas de algum país da Europa Central, que executava e cantava, com alma e paixão, uma bela e triste canção que falava de estradas sem fim e de pessoas que vêem o propósito de suas vidas somente no amor e na música.
No final, um som em forma de lamento saído do fundo da alma, alcançou o violino, desprendeu-se, subiu, atravessou os céus, ecoando, espalhando-se pelo firmamento em ondas sonoras e harmônicas, até alcançar a mais recôndita galáxia, despertando  para uma pequena pausa no seu sono eterno o compositor magiar, húngaro, que reconheceu, gratificado, naquele som que o despertava, a última frase musical de uma de suas mais belas composições .
 Lá  na terra, no pólo oposto ao do jovem cigano, onde a lua cheia refletida no mar era soberana, um único espectador, também de alma errante, completando o elo entre os dois pólos e  prestes a chorar uma tristeza do tamanho do universo, aplaudia de pé aquela rara serenata, transbordando com a sensação da imensidão, da grandeza e da infinita beleza, que o inundou e o resgatou, qual lanterna dos naufragados. 

                                                                                  Carlos Grassioli.

                           

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