“O poço..., que palavra mais funda, verde-escura, fresca, sonora. ...Ó labirinto quieto e mágico, parque sombrio e flagrante, magnético salão encantado! “ (J. R. Jiménez- Platero e Eu).
Quando me sinto arrebatado por um determinado tipo de poética, obrigo-me a concluir que sou uma pessoa antiga - principalmente quando ela remete a um imaginário fantástico de infância, mais ligado à terra e ao campo do que à grande cidade, que com seus paredões de cimento e ferro limita cada vez mais o olhar, o campo da visão e, principalmente, o da imaginação!
E é no imaginário da infância que eu encontro matéria-prima abundante para poesia. Onde encontro, por exemplo, como nas gravuras de Escher, intactos, ainda, pedacinhos de céu azul refletidos em pequenas poças de água da chuva, em meio à lama, que eu “desviava pra não desmanchar”
Sem luz elétrica, exceto alguns livrinhos de contos de fada, era o céu minha imensurável tela colorida que aguçava minha imaginação, então soberana. Dependendo da luminosidade, da hora do dia, sem maiores esforços e através de uma fabulosa arquitetura de nuvens, eu podia ver imensos castelos, palácios dourados, geleiras, desertos azulados, dragões e monstros de todos os tamanhos e formas, fadas, anjos, todos os animais, além de montanhas gigantescas entremeadas de explosões que variavam do púrpura ao violeta, como se eu estivesse assistindo ao nascimento do mundo.
Uma criança, sonâmbula, extremamente distraída , isso sim, que costumava tropeçar com freqüência por andar sempre olhando pros lado e que se interessava por coisas que normalmente não interessavam às demais crianças. O poço d’água ao lado de minha casa, por exemplo.
Conhecido na vizinhança como o poço mais fundo e que nunca secava, cuja água, além de cristalina, deixava os copos de vidro ou as canecas de alumínio suados de sua água geladinha, quando recém tirada pelo balde velho de latão, que fazia um ruído tal, ao descer destrambelhado, pois a manivela rodava solta até ele tocar na água, que servia de charada e que soava poético: “O que é, o que é que desce cantando e sobe chorando?”
Pra mim, constituía-se em motivo de grande satisfação ver, por exemplo, os caminhantes (muitas vezes ciganos) que com frequência, ao passar pela estrada diante da nossa casa, cansado e com calor, pediam um caneco d’água.
Era um espetáculo à parte, ao que eu assistia sempre como se fosse a primeira vez, desde o ruidoso descer do balde até a água ser sorvida pelo passante, que, ao bebê-la, deixava transparecer, por meio do ruído da água descendo pela garganta e escorrendo pelos lados da boca, o prazer único e inigualável da sede saciada. Invariavelmente terminava com um efusivo AAAHHH!... muuuuuito obrigaaaado!!!
Eu assistia sério e em silêncio, com os braços cruzados pra trás, e a sensação que eu sentia era de que meu pai ou minha mãe tinham salvado uma vida com aquele gesto, o que aumentava o seu tamanho e a grande admiração que eu sentia por eles.
Melancias, no verão, eram colocadas a resfriar dentro do poço, envoltas a um saco de algodão. E eu não saberia dizer se o prazer maior estava no ritual do fazê-las descer e subir, se na degustação ou simplesmente no fato de ver a melancia, suada, fresquinha, que, ao ser rachada ao meio, se abria num sensual degrade de cores que começava no verde da casca, depois se tornava branco, rosado, grená, para terminar num vermelho vivo, incomparável.
Tão fundos... tão profundos eram os poços de minha infância que suas profundezas ou profundidades se destacavam, também, pelo signo da tragédia, quando escolhidas pelas pessoas que preparavam nos silêncios de seus corações desesperados, como se fosse uma obra de arte, seu último ato, que, na calada da noite, culminava na queda derradeira e fatal, em direção à morte. Uma forma, talvez, de chegar mais rápido às estrelas, refletidas no fundo do poço.
Espiar pra dentro nem pensar: era território proibido pra nós, crianças; mas eu tanto insistia que minha mãe às vezes me segurava, me deixava olhar e eu ficava impressionado, tanto com o céu azul do dia refletido no fundo, como com o céu estrelado.
Nessas ocasiões, depois de ver, bem lá no fundo, o céu, eu pedia um caneco de água fresca; e o ritual do balde que descia “cantando e voltava chorando” era só pra mim.
De dia, a água, alem de geladinha, tinha gosto de azul... gosto de céu.
E, se de noite, eu fechava os olhos e ao bebê-la ficava imaginando as estrelinhas que passavam pela minha garganta, invadindo meu pequeno corpo de criança lunática.
Mais ou menos como o Arco-íris - que, segundo algumas lendas, bebe água de um lugar pra devolver em outro -, encerro este vôo poético à infância com a nítida sensação de ter bebido água de um tempo em que ela saía do chão e tê-la devolvido em outro, em que ela sai... “sabe-se lá de onde”, responderia uma criança de hoje... e com gosto de tudo, menos de azul,.. de céu .
Estrelinhas, então, nem pensar...
... nem imaginar!
Carlos Grassioli, praia da Gamboa
Inverno de 2011
Estive no Monte Roraima (venezuela) e lá bebi agua de um poço de cristal. Lá, bem lá no fundo do poço onde a visibilidade era total, vi a mim mesma,enquanto esperava a agua se assentar, eu desfigurava, e pude ver minha feiura de humano. E no parar da agua, vi um humano perdido entre um mundo de mais de 600 mil anos, o Monte Roraima. E encerrando meu voo poetico aos 25 anos,pois se faz dez anos que estive lá. Volto a minha infancia de adulto que ama demais.
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